22/07/2008 17:33:22
Notícia - JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E ANOTADA

O CIDADÃO NO PÓLO ATIVO DA AÇÃO POPULAR – POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

 

Superior Tribunal de Justiça

Recurso Especial no. 538.240 – MG (2003/0091046-2).

Relatora Min. Eliana Calmon, 17.04.2007 – DJ 30.04.2007.

 

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – AÇÃO POPULAR – FALTA DE COMPROVAÇÃO DA QUALIDADE DE CIDADÃO (CÓPIA DE TÍTULO DE ELEITOR) – ART. 1º, § 3º DA LEI 4.717/65 – EXTINÇÃO DO PROCESSO NO SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO – AUSÊNCIA DE CONDIÇÃO DA AÇÃO – ART. 13 DO CPC: INAPLICABILIDADE – ERRO MATERIAL QUE SE CORRIGE.  

 

1. Indicação equivocada de que o julgamento teria ocorrido por maioria por considerar como voto vencido a manifestação do advogado de uma das partes. Erro material que se corrige para afastar-se a conclusão de que ocorreu cerceamento de defesa e desobediência ao art. 530 do CPC.

 

2. Tese em torno da aplicação dos arts. 13 e 284 do CPC analisada expressamente pelo Tribunal a quo, o que afasta a negativa de vigência do art. 535 do CPC.

 

3. O art. 5º, LXIII da CF/88 e a Lei nº. 4.717/65 estabelecem que somente o cidadão tem legitimidade ativa para propor ação popular.

 

4. Consideram-se cidadãos os brasileiros natos ou naturalizados e os portugueses equiparados no pleno exercício dos seus direitos políticos.

 

5. Tratando-se a legitimidade ativa de condição da ação e não representação processual, afasta-se a aplicação dos arts. 13 e 284 do CPC, não sendo possível permitir que a parte traga aos autos cópia do título eleitoral ou documento que a ele corresponda. Correta extinção do feito sem julgamento do mérito.

 

6. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos modificativos, para negar provimento ao recurso especial.

 

 

Notas

 

A qualidade de cidadão, ou seja, a legitimação ativa na Ação Popular é muito debatida na doutrina, pois preceitua o §3º; do artigo 1º. da Lei 4717/65, que para propor a Ação Popular, o cidadão precisa comprovar esta condição apresentando o título de eleitor, provando assim estar no gozo dos seus direitos políticos. Porém, será que é correto tal requisito? Restringir nos dias de hoje a atuação do cidadão, como o fez tal acórdão, é legal? Na verdade, a indagação que se faz para chegar-se a uma resposta concreta é a de que: somente é cidadão quem possui título eleitoral?

 

Quanto à indagação feita anteriormente, Luiz Manoel Gomes Junior[1] acertadamente afirma que: “(...) ora o fato de possuir título eleitoral não torna alguém “mais cidadão” do que outro que não tenha referido documento”.

 

Ora, nossa sociedade, com tamanha desigualdade, falta de informação e punição não pode ser restringida de um de seus maiores direitos constitucionalmente previstos: ser cidadão.

 

Tanto é assim que Teresa Arruda Alvim Wambier[2] afirmou que, “veja-se a lição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo: ‘Entendemos o conceito de cidadão exatamente dentro da concepção dos mestres de Coimbra, ou seja, o cidadão em nossa Carta Magna é a pessoa humana no gozo pleno de seus direitos constitucionais e não única e exclusivamente ‘nacional no gozo de seus direitos políticos’. O cidadão brasileiro, portanto, possui igual dignidade social independentemente da sua inserção econômica, social, cultural e obviamente política (...)”.

 

Muito bem colocado por Lucas de Souza Lehfeld[3], (...) a cidadania, portanto, transpassa aquela concepção do simples exercício dos direitos políticos. Isso se deve em virtude da complexidade dos problemas sociais, bem como da ineficaz participação popular no processo político, reduzida na efetivação do voto (exercício mitigado da soberania popular), já que outras modalidades de participação direta revelam-se, ora como meras expectativas submetidas ao deleite do Parlamento (como o plebiscito e o referendum), ora como instrumentos inexecutáveis de pressupostos exigidos legalmente deveras rigorosos, muitas vezes, divorciados da realidade. Cabe ressaltar, neste caso, a título de exemplificação, a dificuldade de se propor, por iniciativa popular, um projeto de lei nos termos do artigo 14, III, da Constituição Federal.”

 

O citado autor afirma ainda que “exercer a cidadania é não estar submetido a amarras quando da participação no processo político; não encontrar óbices quando a Autoridade Pública exigir a efetiva distribuição da justiça social. Na verdade, a liberdade é o principal motivo pelo qual os homens se encontram politicamente organizados. Uma vez tolhido esse campo de liberdade por um ato arbitrário, de cunho administrativo ou normativo, é facultada ao cidadão a resistência, no intuito de restabelecer os limites constitucionalmente previstos ao Poder Público.”

 

Sabe-se que, para que o cidadão possa exercer seu direito de participação na gestação da res publica, é necessário que tenha informações suficientes tendentes a orientá-lo na manifestação de seu pensamento e na dedução de sua vontade, fatos esses que infelizmente não ocorrem em nosso país.

 

Porém, com todas essas manifestações, ainda existem vozes em contrário, tendentes a restringir a participação-cidadã, considerando-a apta a produzir efeitos jurídicos apenas com a juntada do título de eleitor.

 

É o caso do constitucionalista Alexandre de Moraes[4], que afirma que “somente o cidadão, seja o brasileiro nato ou naturalizado, inclusive aquele entre 16 e 21 anos, e ainda, o português equiparado, no gozo de seus direitos políticos, possuem legitimação constitucional para a propositura da ação popular. A comprovação da legitimidade será feita com a juntada do título de eleitor (brasileiros) ou do certificado de equiparação e gozo dos direitos civis e políticos e título de eleitor (português equiparado).”

 

Seguindo essa doutrina, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, afirma que “cidadão é o brasileiro, nato ou naturalizado, que está no gozo dos direitos políticos, ou seja, dos direitos de votar e ser votado[5].”

 

Meirelles Teixeira[6] defende que “na perspectiva de um novo paradigma para a cidadania, conceitua-a a prerrogativa que se concede a brasileiros, mediante preenchimento de certos requisitos legais, de poderem exercer direitos políticos e cumprirem deveres cívicos.”

 

Hannah Arendt[7], no mesmo sentido, afirma que “do conceito clássico – a qualidade de participação na organização do Estado, quer como eleitor, quer como eleito – o jus civitatis e o jus activae civitatis, na clássica distinção de Jellinek – representam um bem inestimável, mas hoje em dia, esse aspecto cívico do ser humano não nos faz esquecer a imperiosa defesa dos direitos vinculados à sua condição existencial e participativa, abrindo um leque de salvaguardas individuais não previstas na concepção do Estado de Direito de feito clássico.“

 

Em uma de suas últimas obras, Luiz Manoel Gomes Júnior[8] já afirmava que o cidadão “não é só o eleitor, é qualquer integrante da população brasileira.” E firmando-se nesse sentido, aprimorou sua doutrina, como acima exposto.

 

Cândido Rangel Dinamarco[9] ensina que “visando o cidadão a anulação de um ato através da Ação Popular, atua como membro ativo da sociedade, evidenciando uma preocupação com a utilização da res publica, sendo importante a ampliação de meios de participação deste autor garantindo-lhe o direito de ação.” Atualmente, essa última posição tem prevalecido, inclusive com julgado do Supremo Tribunal Federal[10].

 

No acórdão ora anotado, algumas diretrizes são fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça:

 

a-) O art. 5º, LXXIII da CF/88 é suficientemente claro ao estabelecer que a ação popular somente pode ser intentada pelo cidadão.

 

b) A doutrina majoritária tem se posicionado no sentido de que somente o cidadão em sentido estrito - eleitor - tem legitimidade ativa ad causam para propor a ação popular, de forma que a não-comprovação da condição de cidadania resultaria em carência de ação. Dentre esses doutrinadores pode-se destacar Hely Lopes Meirelles, Rodolfo de Camargo Mancuso e José Afonso da Silva.

 

Diante dessas diretrizes, deve ser levado em conta que a lei pode não ser condizente com sua finalidade original, por ter sido elaborada de forma a não garantir o bem comum ou por sua desvirtuada aplicação e interpretação. À medida que a lei afasta-se de sua finalidade original, que pode muitas vezes não ser a finalidade desejada pelo legislador, ela perde seu compromisso com o bem comum e, naturalmente, deixa de beneficiar a todos para beneficiar alguns. Tal lei, em perdendo sua identidade, não pode continuar a ser lei, devendo ser revogada.

 

É certo que tanto a criação da lei como a sua aplicação devem visar ao bem comum. Se assim não for, a lei não estará cumprindo a sua finalidade.

 

Carlos Maximiliano[11] afirma que “em geral, a função do juiz, quanto aos textos, é dilatar, completar e compreender, porém não alterar, corrigir, substituir. Pode melhorar o dispositivo, graças à interpretação larga e hábil; porém não negar a lei, decidir o contrário do que a mesma estabelece. A jurisprudência desenvolve e aperfeiçoa o Direito, porém como que inconscientemente, com o intuito de o compreender e bem aplicar. Não cria, reconhece o que existe, não formula, descobre e revela o preceito em vigor e adaptável à espécie. Examina o Código, perquirindo das circunstâncias culturais e psicológicas em que ele surgiu e se desenvolveu o seu espírito; faz a crítica dos dispositivos em face da ética e das ciências sociais, interpreta a regra com a preocupação de fazer prevalecer a justiça ideal, porém tudo procura achar e resolver a lei, jamais com a intenção descoberta de agir por conta própria, proeter ou contra legem.”

 

Não se pode interpretar uma norma jurídica visando a interesses contrários ao bem comum, sob pena de gerar arbitrariedade e, consequentemente, injustiças. A lei foi elaborada com o objetivo de estabelecer o benefício comum, não se admitindo, em hipótese alguma, interpretação que venha a satisfazer objetivos contrários à realização da justiça, sob pena de ferir a democracia vivificada em nosso país.

 

Exemplo disso é o caso que ora analisamos neste trabalho, qual seja, a restrição da legitimação do autor da Ação Popular para somente aquele que possua o título eleitoral. O fato de possuir título eleitoral não torna alguém “mais cidadão” do que outro que não tenha referido documento. Aliás, no Brasil, que se intitula Estado Democrático de Direito, é compatível essa restrição?

 

Portanto, se no Brasil foi adotado o Estado Democrático de Direito, subentende-se que qualquer cidadão estaria legitimado a propor essa ação que lhe foi diretamente conferida pela Constituição.

 

No entanto, não é o que vem ocorrendo, como ora noticiado, em flagrante desrespeito ao direito constitucional do cidadão. Diz-se que cidadão e a sua prova faz-se somente mediante a apresentação do título eleitoral. Então, pode-se entender que quem não tem esse documento ou não age corretamente com seus deveres políticos, não é cidadão. Essa afirmação tem algum sentido no Brasil que vivenciamos hoje com tamanha desigualdade educacional e social?

 

Em outros termos, frente à posição do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tema, pensamos que há ainda várias considerações que deverão ser levadas em conta, até porque a Ação Popular é a única ação que pode ser utilizada por qualquer cidadão na busca de tutelar e incentivar a defesa de bens pertencentes à coletividade.

 

 

Karoline tortoro barros

Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP



[1] GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. Coordenação: Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Kazuo Watanabe. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 380.

[2] Controle das decisões judiciais por meio de recurso de estrito direito e da ação rescisória – Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória: o que é uma decisão contrária a lei? São Paulo: RT, 2001. p. 91, nota 159.

[3] Lehfeld, Lucas de Souza. Hermenêutica, cidadania e Direito. São Paulo: Millennium Editora, 2005. p. 163.

[4] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13ª. Edição. São Paulo: Atlas, 2003. p. 193.

[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª. Edição. São Paulo: Atlas, 2004. p. 680.

[6] MEIRELLES TEIXEIRA, J. H. Curso de direito constitucional. São Paulo: Forense Universitária, 1991. p. 565.

[7] ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 142.

[8] GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 09.

[9] DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 424/425.

[10] STFPET 2.131-2, rel. Min. Celso de Mello, j. 13.10.2000, DJU 20.10.2000. A título informativo, esse julgado concluiu que “hoje, no entanto, registra-se sensível evolução no magistério da doutrina, que agora, identifica o autor popular como aquele que, ao exercer uma prerrogativa de caráter cívico-político, busca proteger, em nome próprio, um direito que, fundado em sua condição de cidadão, também lhe é próprio”.

[11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 103.

 

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